Vou falar-lhes dum Reino Maravilhoso. Embora muitas pessoas digam que não, sempre houve e haverá reinos maravilhosos neste mundo. O que é preciso, para os ver, é que os olhos não percam a virgindade original diante da realidade e o coração, depois, não hesite. Ora, o que pretendo mostrar, meu e de todos os que queiram merecê-lo, não só existe como é dos mais belos que se possam imaginar. Começa logo porque fica no cimo de Portugal, como os ninhos ficam no cimo das árvores para que a distância os torne mais impossíveis e apetecidos.

Vista de S. Martinho de Galafura

É assim que começa Um Reino Maravilhoso, um dos mais belos textos sobre Trás-os-Montes e que faz parte de um roteiro de Miguel Torga com o título Portugal e cuja primeira edição é de 1950.
O autor escolhe lugares em função da sua afeição pela terra. Paisagens como S. Leonardo de Galafura para contemplar o Douro ou navegar no próprio rio, “desço o Doiro de barco, desde a foz do Sabor. Faltava no meu rol de deslumbramento o maior de todos (…) digo adeus a S. Salvador do Mundo, que espreita lá do alto o abismo de onde lhe aceno, e sigo humildemente silencioso, ao som do compasso dos remos, metrónomos da minha emoção sem palavras”.

S. Salvador do Mundo

Em outras escritas desenha perfis regionais ou retratos irónicos do país e de facetas que lhe merecem repulsa. Parece não suportar o engrandecimento bacoco e algumas instituições seculares.

Casa de Miguel Torga em S. Martinho de Anta

Miguel Torga, Adolfo Rocha é o seu verdadeiro nome, nasceu em S. Martinho de Anta, em 1907 e é um filho da terra. Num duplo sentido. De um modo afetivo porque manteve sempre a ligação à sua terra natal. Também noutra perspetiva, um homem telúrico, com prazer de calcorrear as serras. Ou, como ele próprio diz, “comer a terra é uma prática velha dos homens. Antes que ela o mastigue, vai-a mastigando ele.”

A terra também molda o perfil. Frontal, austero e recuado dos atos sociais. Intransigente em relação aos valores, conforme diz o seu vizinho em S. Martinho de Anta que acrescenta que foi muito influenciado por Torga. Aprendeu com ele que “mais do que o dinheiro ou as armas o que tinha mais força era dizer não. Não transigir nos valores. Dizer sempre o que pensa.”

Campa de Miguel Torga e da mulher em S. Martinho de Anta. Pediu uma campa simples, acompanhada de uma torga.

A formação académica de Miguel Torga é de Medicina, mas os seus textos e poesia não têm a marca de médico. Outra diferença, por exemplo na comparação com Fernando Namora, que também foi escritor e médico, é o âmbito geográfico dos roteiros literários, conforme sublinha o geógrafo Rui Jacinto.

“O Namora é muito regional, embora seja um escritor que também abarca o país. Por exemplo, Um Sino na Montanha, ele tem textos interessantes sobre o Barroso. Ele quis escrever outros romances que não concretizou.  Assim como o Torga. A sua geografia é relativa, embora, nos Diários, ele tenha apontamentos de quase todo o país.  Mas são apontamentos. O Namora é diferente, faz romances em que naquele local faz uma análise profunda das relações sociais que ali se estabelecem.”

Rui Jacinto

Rui Jacinto, geógrafo e profundo conhecedor da obra de Fernando Namora também sente as marcas do livro Portugal, de Miguel Torga porque recorre à viagem por lugares e territórios de eleição que acaba por mitificar, para tecer uma geografia literária de cunho imaginário e simbólico que trespassa toda a obra. (Em APGEO)

Sagres

Neste aspeto Rui Jacinto diferencia Portugal de outras obras que, de alguma forma, fazem as viagens a Portugal, nomeadamente a Viagem a Portugal de Saramago e a Terra e o Homem de Jaime Cortesão. “O Portugal de Miguel Torga tem para mim uma geografia imagética diferente. Ele acentua muito o litoral, o mar. Tem as referências normais, mas depois vai à ponta de Sagres. Destaca Sagres, as Berlengas… A ideia do mar. É um outro imaginário que ali está plasmado.”

Sagres

O roteiro da viagem em Sagres tem ainda uma enorme riqueza literária.
O promontório ganha vida própria e assume o estatuto de uma ilha. Um rochedo que confronta o mar e o desconhecido com a valentia e a superação dos mareantes e, nas suas costas, o resto do Portugal Continental que, com alguma frequência, se perde em sentimentos vis. Indignado, “o mar português” quer destruir o pesadelo, ou, pelo menos, transformá-lo numa ilha onde não possam chegar peregrinos da impotência. Quer destruí-lo, ou separá-lo de Portugal. “

Ver Documentario – Miguel Torga, o meu Portugal

Portugal” de Miguel Torga faz parte do programa da Antena1 Vou Ali e Já Venho e a emissão deste episódio pode ouvir aqui.

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