O turismo tomou conta do centro histórico de Lisboa. As hordas de turistas, a concentração de novos hotéis e a epidemia de um milhar de tuk tuks e de outras “animações turísticas” são sinais evidentes da turistificação. A identidade vai-se perdendo, como também o comércio tradicional.
O significado dos números do turismo de Lisboa.
Nos últimos dez anos mais do que duplicou o impacto do turismo na economia da cidade de Lisboa e também na região metropolitana.
O valor ronda os 15 mil milhões de euros e o sector emprega cerca de 100 mil pessoas.
A agonia de bairros históricos gerou uma nova dinâmica, com restauro de edifícios abandonados, novas oportunidades de empregos e revitalização de estruturas económicas e sociais.
Para uns, o “filão” ainda tem muito para dar e crescer. A esta perspetiva, interpretada por outros como “ganância”, é contraposto que já foi ultrapassado o equilíbrio.
O bem-estar dos residentes foi profundamente debilitado, o seu território conquistado e esvaziado de identidade, nem sequer restam os passeios, ocupados por esplanadas, bicicletas, trotinetes… além do milhar de tuk tuks que o município, em mais uma tentativa, tenta regular a atividade.
Há ainda os riscos de uma excessiva dependência do Turismo e de, a ganância matar a galinha dos ovos de ouro.
Lisboa no “top” da sedução e da pressão
A cidade de Lisboa tem perdido habitantes. Nos Censos de 2021 estavam registados 544.851 residentes. No entanto, em particular nos meses de Verão, a cidade de Lisboa recebe diariamente dezenas de milhares de turistas – alguns números apontam entre 30 a 40 mil.
Estudos realizados por empresas internacionais calculam a relação de 11 turistas por habitante e colocam Lisboa no 20º lugar do “Top 100 City Destination índex de 2023” que compara métricas de seis critérios em análise.
Na avaliação do impacto em termos de dormidas, um dos últimos valores conhecidos é referente a Maio deste ano que registou a média diária de 65 mil dormidas na região de Lisboa.
No total dos cinco primeiros meses, o valor atingiu 2,03 milhões de dormidas.
Em Junho deste ano a capacidade de alojamento, só na cidade de Lisboa, ultrapassava a 120 mil camas: 49.143 na hotelaria e 73.412 no alojamento local.
O boom hoteleiro em Lisboa
Este ano estão registados 322 estabelecimentos turísticos em Lisboa (hotéis, apartamentos, pousadas e turismo de habitação).
44% foram registados nos últimos dez anos – 144 unidades o que revela um forte taxa de crescimento desde 2014.
Se a contagem for a partir de 2019, ano em que foram criadas as zonas de contenção em algumas freguesias de Lisboa, foram registados 86 novos estabelecimentos turísticos, dos quais, 42 estão exatamente nas zonas de contenção. Quase metade.
Concentração
Só na Baixa Pombalina – o “quadrado” da rua Áurea à rua da Madalena -, nos últimos dez anos foram registados 40 novos hotéis.
Se o foco for mais aproximado, a galinha prefere por os ovos na rua Áurea.
De 2014 até agora forma registados sete novos hotéis e estão projetados mais três para a rua Áurea.
Um deles ocupa quase um quarteirão, onde antes era do BCP. O edifício tem seis pisos e 8.850 metros de quadrados de área.
O negócio foi em 2018 e o BCP seguiu os passos do BPI, Novo Banco e CGD que também venderam os seus edifícios na Baixa Pombalina.
O quarteirão do BPI deu lugar ao hotel Andaz Lisboa e o quarteirão, com vários prédios, tem 11 mil metros quadrados de área bruta de construção.
Ainda nos últimos dez anos, Anjos, Graça e Mouraria têm 11 novos hotéis e estão previstos mais quatro.
No Chiado e Bairro Alto foram registadas nove unidades e estão projetadas mais quatro.
Na Almirante Reis surgiram 5 e na Avenida da Liberdade foram registados 4.
Segundo o relatório “Europe Hotel Construction Pipeline Trend Report” para os próximos dois anos Lisboa tem previstos 36 novos hotéis, com mais de 4.400 quartos.
O mesmo documento aponta Lisboa como a terceira cidade da Europa que vai abrir mais hotéis nos próximos anos.
O Turismo de Lisboa elenca 33 “projectos para a cidade de Lisboa referenciados sem data de abertura prevista”.
Uma tendência na hotelaria é o maior crescimento, em termos percentuais, de hotéis de quatro e cinco estrelas.
Por nacionalidade dos hóspedes, também foram registadas alterações no passado recente.
De Janeiro a Maio deste ano a maior fatia foi de norte-americanos – 936 mil dormidas -, que suplantaram as de França – 546 mil -, e do Reino Unido – 543 mil. Em quarto lugar surge o Brasil com 525 mil dormidas e a nacionalidade seguinte é dos nossos vizinhos espanhóis – 521 mil.
No ano passado a taxa de ocupação dos hotéis na região de Lisboa foi de 72,5% e o preço médio foi de 146.24 €.
A “contenção” das hostels
As hostels nasceram como cogumelos, mas praticamente que estagnou o número de unidades.
Ao contrário da hotelaria e restantes estabelecimentos turísticos que cresceram 26% nos últimos cinco anos e estão projetadas mais algumas dezenas para o futuro imediato, no universo das hostels o crescimento foi apenas de três e quatro unidades nos últimos dois anos.
Em 2019 a capacidade de alojamento era de 6.478 camas (7.733 utentes). Este ano era de 8.473 camas e 10.190 utentes.
As restrições criadas ao alojamento local, a partir de 2019 explicam o reduzido crescimento nos últimos anos.
No entanto, foi em particular no período em que na Assembleia da República se arrastou a legislação que permitiu às autarquias limitar o alojamento local, que o número de hostels disparou em Lisboa.
Das atuais 227 unidades, 52 abriram em 2018 e 29 no ano seguinte. Os dois anos correspondem a 36% do número atual.
Foi esta situação que, em parte, explica que 166 hostels se encontrem nas zonas de contenção.
Outra particularidade, das atuais 227 unidades, em 177 o titular é arrendatário.
83% das hostels abriram nos últimos dez anos o que evidencia que é um fenómeno com expansão muito rápida e concentrada no final da última década.
A hostel maior tem 304 utentes em 56 quartos, com camas e beliches, na freguesia da Misericórdia e abriu em março deste ano.
O novo que quer ser velho
Ao contrário da ambição da eterna juventude, o comércio na zona histórica de Lisboa, apesar de recente, “veste-se” de antigo, tradicional e original.
Na verdade, é muito pouco o comercio tradicional que continua em atividade. O espaço foi conquistado por lojas de souvenires e de marcas internacionais.
Só os espanhóis, por exemplo, vendem sanitas nos Restauradores e vestuário no Rossio.
A Zara ocupa quase todo o quarteirão! numa das praças principais da capital portuguesa. A excepção é a Pérola do Rossio que quebra a exclusividade da marca espanhola.
Em outras zonas da Baixa Pombalina é igualmente vulgar o turista deparar-se com lojas que estão presentes em muitas outras cidades europeias.
O Fórum Cidadania Lx colocou a questão do desaparecimento do comércio tradicional e em 2015 esta preocupação encontrou resposta no programa municipal Lojas com História.
Em 2027 juntou-se nova legislação, mas os apoios e o propósito não impedem a erosão e a perda de identidade do comércio tradicional no centro histórico de Lisboa que já tinha lugar antes do boom turistico.
Em Setembro o site do Lojas com História referenciava 153 estabelecimentos. Alguns têm sido classificados no passado recente, outros desapareceram.
Num artigo no Público Paulo Ferrero, presidente do Fórum Cidadania Lx, diz que no ano passado fecharam 16 lojas emblemáticas (“o pior registo dos últimos 30 anos”) e cerca de uma centena desde o inicio do século.
Muitas encerraram na sequência de um acordo entre comerciantes e os proprietários dos imóveis. Alguma têm sido “engolidas” pelos novos hotéis que desvalorizam este património.
Como afirma Luís Araújo, ex-presidente do Turismo de Portugal, em entrevista ao Eco: “Não percebo como é que se fazem projetos, que são projetos maravilhosos, cinco estrelas que vão atrair o tipo de turistas que queremos, mas depois colocam se lojas ancestrais ou lojas tradicionais na rua só para termos uma receção que tem 20 metros a mais ou termos uma sala de reuniões que tem 50 metros a mais. Isso não percebo e acho que isso é responsabilidade social. Tem de haver esse compromisso também, até porque é uma componente de valorização do que é o nosso património.”
No final deste mês a frutaria Bristol, na rua das Portas de Santo Antão vai sentir esse fim amargo com o encerramento na sequência da construção de mais um hotel.
A turistificação do centro histórico de Lisboa e em particular da Baixa Pombalina remete para outro processo que, para muitos, já se transformou em desconfiança: afinal que património vamos propor à UNESCO para classificar a Baixa Pombalina como Património Mundial?