“Desço o Doiro de barco, desde a foz do Sabor. Faltava no meu rol de deslumbramento o maior de todos que só hoje, ao cabo de muitos anos de espera, me foi concedido por não sei que caprichoso deus do acaso. Vou colado à proa do rabão, alheio aos dentes de sol e ao garrote de sede, atento apenas à tragédia de água e pedra que há horas se desenrola no palco movediço, entre fúrias e catarses. (…) Por isso, digo adeus a S. Salvador do Mundo, que espreita lá do alto o abismo de onde lhe aceno, e sigo humildemente silencioso, ao som do compasso dos remos, metrónomos da minha emoção sem palavras”
Miguel Torga.
É um dos miradouros mais conhecidos do Douro Vinhateiro.
O nome não se esquece, S. Salvador do Mundo, e a vista com o rio Douro apertado entre escarpas de granito revela como foi robusta e continuada a vontade do homem em conseguir contornar a natureza agreste.
O ponto mais alto do santuário fica a quase 500 metros de altitude e a vista mais interessante é junto a uma capela, no meio de uma escarpa rochosa, povoada por enormes penedos e onde imensos carrascos se agarram ao solo para continuarem de pé.
O cenário rude contrasta com o caudal calmo do rio, depois de ter sido domesticado por várias barragens. Uma delas, a da Valeira, está aos nossos pés. Aproveita um S apertado que antes do final do século XVIII era ocupado pelo cachão que impedia a navegação no Douro e retirava valor económico à vinha que ficava a montante.
“No local onde o Douro é atravessado por um esporão granítico, formava-se o cachão da Valeira e, até ao século XVIII, aqui terminava a possibilidade de navegar. (…) A Companhia Geral de Agricultura das Vinhas do Alto Douro recebe a incumbência de destruir o cachão. A obra vai durar 12 anos e, em fins de 1792, é possível atravessar o local em barco rabelo. Apesar de navegável, mantém-se perigoso. Em 12 de Maio de 1861, Joseph James Forrester foi visitar D. Antónia Adelaide Ferreira à Quinta do Vesúvio. De regresso à Régua, ao atravessar o local, os remeiros perderam o controlo da embarcação e esta afunda-se. Morrem dois criados da casa, cujos corpos são encontrados mais tarde perto da Régua. Do barão de Forrester não voltou a haver noticias, nunca foi encontrado. Era engolido pelas águas do rio um homem que lhe dedicara a vida, que muito contribuiu para o seu desenvolvimento.”
Portugal, o Sabor da Terra; José Mattoso, Suzanne Daveu, Duarte Belo.
Depois da barragem o Douro continua a percorrer o vale estreito e sinuoso entre montanhas pintadas com as cores da vinha.
O miradouro está num dos extremos do santuário e sente-se a serenidade do lugar. Como testemunham duas mulheres, “nós somos daqui perto e vimos aqui regularmente. O contacto com a natureza, as capelinhas, este lugar calmo. É sereno e com o rio estendido tiram-se fotos maravilhosas.”
O que mais impressiona é a conjugação da natureza, o Douro, a parte religiosa, a vinha e a paisagem mais humanizada, mas, acrescenta Cláudia Paulo, “a parte da natureza é o que nos leva mais a visitar este sítio. Depois temos ali um miradouro que consegue ver bem o Douro e é fantástico. Consegue-se ter uma boa perspectiva do rio e há várias pessoas que têm muitas foto de lá. São fotos muito bonitas. Tem os socalcos da vinha e o Douto como pano de fundo.”
Cláudia Paulo e Elisabete Paixão percorreram o santuário com a família. Elisabete já vem aqui há mais de 20 anos e explicou-me o motivo porque muitos cactos estão riscados com nomes: “a gente escreve os nomes. Fica registado o nome das pessoas que vêm cá. Sempre que vimos cá fazemos isso. Escrevemos nos cactos os nossos nomes, mas na vez seguinte nunca conseguimos encontrar os nosso nomes.”
Os rituais não ficam por aqui, há mais um que é imperativo para sucesso nos amores: “quem conseguir dar um nó numa giesta com a mão esquerda o amor é para sempre.” É uma superstição “deste lugar. Quem vier a S. Salvador do Mundo e não der um nó com a mão esquerda, só com uma mão, quem não conseguir, esse amor vai acabar.”
As superstições misturam-se com a fé e remetem para a utilização do Monte do Ermo para fins religiosos, a partir do século XVI, com a construção de um ermitério.
As nove capelas foram construídas em particular no século XVIII e fazem de S. Salvador do Mundo o maior santuário do Alto Douro Vinhateiro. As capelas estão dispersas ao longo do monte, oito estão numeradas e representam a paixão de Cristo. “As capelinhas também chamam muito a atenção. Cada capelinha diz alguma coisa especifica acerca dos vários passos de Jesus. E isso também motiva as pessoas a virem visitar as capelinhas para verem os vários estados de Jesus com a cruz, ao longo do seu calvário.”
No interior de algumas capelas estão esculturas religiosas e consegue-se espreitar por janelas. À porta de cada uma estão vasos com flores.
Na saída do santuário temos também uma vista interessante, para o Douro em Ferradosa, que pode complementar o passeio.
É o que costumam fazer Cláudia Paulo e Elisabete Paixão. “Costumamos vir por volta da hora de almoço e passamos aqui a tarde. Vamos comer um gelado. Ali em baixo na Ferradosa que é um lugar muito lindo. As pessoas vão lá pescar e come-se muito bem. Há também a linha do comboio, gostamos de passar por lá. E fazem lá excelentes cruzeiros.”
Do alto do santuário temos vistas para mais dois miradouros. O da Senhora do Viso, em Custoias, e o miradouro de S. Martinho.
Miradouro de S. Salvador do Mundo e dos amores eternos faz parte do programa da Antena1 Vou Ali e Já Venho, e a emissão deste episódio pode ouvir aqui.
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