Muito antes da caixa da televisão já havia a caixa dos bonecos de Santo Aleixo que entretinha muitas pessoas nas aldeias alentejanas. E tem muitas mais qualidades que a caixa de televisão. Tem música ao vivo, dança, cantares, diálogos musicados, sapateado e frenesim de bonecos, tem gente a falar com as marionetas e até tem cheiro.
Os mais de 60 bonecos deslumbram assistências mesmo em atuações no estrangeiro para plateias que desconhecem a nossa língua. No testemunho do ator José Russo, “apesar de ser um espetáculo com muitas palavras, os bonecos falam muito, consegue-se comunicar de uma forma espantosa com estrangeiros. As pessoas não percebem nada do que estamos a dizer, mas têm uma reação que até nos surpreende.”
Diz ainda José Russo que, “a gente vai percebendo as várias dimensões do espetáculo. Não é só as palavras. É também as cantigas, a quantidade de bonecos, o ritmo, a maneira de falar, a musicalidade das vozes.. As pessoas também referem o cheiro porque é tudo ao natural, com uma candeia de azeite, velas acesas, bombas que rebentam. Somos nós que as fazemos, num cartucho. O espetáculo é tudo isso.”
José Russo é um dos cinco atores do Centro Dramático de Évora (Cendrev) que manipulam as marionetas e são os fiéis depositários dos Bonecos de Santo Aleixo. “Fizemos a recolha deste espólio do nosso teatro popular de marionetas do Alentejo a partir do último bonecreiro tradicional, o mestre António Talhinhas. Isto é uma tradição da expressão oral que ele guardava na sua memória. Na recolha conseguimos fixar uma série de elementos em registos vídeo e áudio.”
O mestre percorria todos os anos várias aldeias alentejanas com os bonecos e preservou esta tradição oral que remonta ao século XVIII. Nem sempre teria sido fácil porque há o registo histórico de um conjunto de bonecos ter sido mandado queimar porque um deles era o Padre Chancas.
Curiosamente, o Padre Chancas é um dos bonecos mais populares. Ainda hoje as pessoas se lembram dele, o que revela que a tradição não morreu. “As pessoas ainda se recordam de nomes de personagens, partes dos textos que eles dizem, a menina Virgininha, o padre Chancas… são mais de 60 personagens e as pessoas têm uma memória vivíssima deste espetáculo. Ao longo destes anos temos insistido em ir a estas aldeias, inclusive a de Santo Aleixo que dá o nome aos bonecos e onde terão sido recriados em meados do século XIX.”
[youtube https://www.youtube.com/watch?v=r4UyNJTO85o]
Por ser uma arte de andarilho o cenário desmonta-se com facilidade. Um pano esconde os atores que manipulam as marionetas (com um varão). Elas estão visíveis mais abaixo, num espaço do formato de uma caixa e com cenários pintados em cartão.
“Apresentam-se num retábulo, um palco muito pequeno que é iluminado com uma candeia de azeite, tem umas cordinhas que fazem duas cortinas na vertical entre o palco onde os bonecos são vistos e o público, o que é uma coisa única no mundo. Não há igual. Os bonecos pertencem a um grupo de marionetas de varão que são manipuladas de cima para baixo. Os bonecos têm entre 20 e 40 centímetros e têm todas as caraterísticas do Alentejo até no modo de falar, que tem a ver com esta lenga lenga alentejana.”
Mesmo os materiais com que são feitos remetem para a realidade local. “O corpo é de cortiça. Os pés são de madeira e no contacto com a madeira do retábulo faz um som muito próprio que intervém no ritmo e na própria musicalidade do espetáculo. As cabeças são de madeira. São muito rudimentares, muito singelos, muito naïf. A estrutura do boneco é muito simples. É um bocado de nariz, depois é pintado o olho com uns tracinhos e são vestidos com os restos de roupas que havia na casa. O cabelo é um bocado de lã.
Antes os pastorinhos tinham um chapéu que devia ser de feltro e foram substituídos pelas caricas que, entretanto, apareceram com as gasosas e as cervejas. O mestre António Talhinhas pintava as caricas de preto e fazia uns chapéus para os bonecos.”
O Centro Dramático de Évora procura manter-se fiel ao repositório do mestre, inclusive no diálogo com o publico que tinha lugar na segunda parte do espetáculo e com uma forte componente de improviso.
“O mestre fazia isso e nós mantemos. Como ele dizia eram ‘as peças da segunda metade do espetáculo’ que eram feitas a pedido do público. Era uma forma de ele ganhar mais dinheiro com isso. As pessoas pagavam à entrada e, como fazia coisas a pedido, mandava um rapazinho com uma latinha da pólvora e uma tampa de cortiça, com um orifício, onde as pessoas colocavam o dinheiro. Ele só satisfazia o pedido se as pessoas lá colocassem dinheiro.”
[youtube https://www.youtube.com/watch?v=vDIdG8JSCv8]
É neste diálogo, com os atores a falar com o público através das marionetas, que frequentemente ocorrem situações que fascinam os próprios manipuladores dos bonecos, “é espantoso o que sentimos. Os atores não se vêm, estão escondidos atrás de uma tela. É espantoso como as pessoas falam com os bonecos exatamente como nós estamos aqui a falar um com o outro. Conversam com o boneco que está a falar com eles. É espantoso. As pessoas perdem a noção do sítio onde estão e de com quem estão a conversar.”
O testemunho passado pelo mestre ao Centro Dramático de Évora ganha vida e também a salvaguarda do património que foi igualmente registado em áudio e vídeo e, entretanto, partilhado num livro.
Documentário na RTP com mestre Talhinhas
O CENDREV assinala 45 anos de atividade com espetáculos gratuitos para o “Auto da Barca do Inferno” de Gil Vicente no sabádo e domingo , 11 e 12 de Janeiro. Sábado, às 21h30 e Domingo, às 16h00. Os convites devem ser levantados na bilheteira do Teatro Garcia de Resende. A companhia receia fechar portas devido à falta de financiamento e apoio a nível nacional.
Acenda-se a candeia de azeite que vai começar o espetáculo com os Bonecos de Santo Aleixo faz parte do programa da Antena1, Vou Ali e Já Venho, e a emissão deste episódio pode ouvir aqui.
O Vou Ali e Já Venho tem o apoio: