Fernando Namora queria ser arquiteto mas foi persuadido pela mãe a seguir Medicina.
Da vocação de arquiteto encontramos o prazer da pintura. Uma faceta pouco conhecida e que pode ser descoberta na Casa-Museu, onde nasceu, em 2019, em Condeixa-a-Nova.

Pintura de Fernando Namora na altura em que esteve em Pavia. O quadro está na C. M. de Mora

Da carreira como escritor fica a observação clinica das relações sociais, da cultura, da luta pela sobrevivência de gente agreste como a terra que pisa, sem eira nem beira, mesmo que designada de Beira Baixa.

Uma porta de entrada para Monsanto e para a rua onde residia

“Fernando Namora é por excelência o grande escritor da Beira Baixa. Não só por aquilo que escreveu, mas também pelos ecos que teve em obras futuras e em pequenos apontamentos.”
A afirmação é do geógrafo Rui Jacinto e adianta que “Namora foi dos primeiros a fazer eco deste calcanhar do Mundo”. “Estamos a falar dos anos 40.  Num período em que a Beira era quase um enclave, um extremo, uma Finisterra no interior de Portugal.” Ainda na opinião de Rui Jacinto, “esses livros de Fernando Namora foram importantes para afirmar todo o imaginário que se construiu da Beira Baixa e que hoje mudou. É completamente distinto.”

Rui Jacinto num encontro em Castelo Branco onde se assinalou o centenário de Fernando Namora

O geógrafo Rui Jacinto é um profundo conhecedor do percurso pessoal e literário de Fernando Namora e, ele próprio, desenvolveu um Roteiro Namoriano. Lugares fundamentais do percurso do escritor e médico. O roteiro começa nas Terras de Sicó, na aldeia dos pais, Vale Florido e Condeixa-a-Nova, onde nasceu.
É, digamos, o berço. Onde Fernando Namora nasce e “corresponde” às origens, depois, Coimbra, onde tem formação. Fez uma parte do liceu e a universidade.

Tinhalhas é uma aldeia do concelho de Castelo Branco

Segue-se a “peregrinação”, já como médico, que passa fundamentalmente por Tinalhas, Monsanto e Pavia.
Isto na fase que diria mais rural, do interior do país. Depois vai para Lisboa em 1950, trabalhar no IPO, onde permanece até à morte, em 1989. Esta fase corresponde ao roteiro namoriano, aos lugares fundamentais. Há depois uma outra dimensão, sobretudo depois de 1965, quando ele, já traduzido, começa a viajar muito. Este percurso vai para além de Lisboa, transcende o país.”

Monsanto
A descoberta da Beira Baixa

A passagem por Monsanto é determinante. Pela influência na narrativa neorrealista e na poesia de Fernando Namora e também porque projetou uma realidade até então desconhecida. De um povo que ele descreve “soturno, endurecido a subir e descer abismos”.

Casa Zeca Afonso em Monsanto

De certa forma, também ele se descobre a si próprio porque, citando Namora, foi para Monsanto “com vinte e quatro anos medrosos e um diploma de médico”.
Exerceu medicina em Monsanto durante dois anos, de 1944 a 1946, mas ficaram inseparáveis.
“Aquilo que é o carisma do lugar está muito bem plasmado na obra de Namora. Aliás, a Nave de Pedra, que só tem um texto sobre Monsanto, é como se todo o livro fosse dedicado ao lugar. O que não é verdade. Mas tal é o imaginário, a relação forte que Fernando Namora tem com Monsanto e o título que ele escolheu para esse livro, Nave de Pedra é quase coincidente com Monsanto.”

Residência de Fernando Namora

Em Monsanto encontramos a casa onde viveu, que continua na posse da família e o antigo consultório na Rua das Fráguas, no centro da aldeia. Os dois locais estão assinalados com referências no exterior.

Onde era o consultório de Fernando Namora

No entanto, talvez o que desperta maior curiosidade é, após a leitura de Retalhos da Vida de um Médico, a partir das fragas da aldeia olharmos para o extenso horizonte. Para o planalto que é abraçado pela serra da Gardunha ou para as serras de Penha Garcia e de lugares escondidos que há cerca de 80 anos foram calcorreados pelo médico que tinha de dar prova da sua competência.

Vista da casa de Fernando Namora para as serras de Penha Garcia

Só, sem equipa, sem tecnologia e com a concorrência dos curandeiros, barbeiros e comadres, conforme descreve na obra fabulosa Retalhos da Vida de um Médico.

Como salienta Rui Jacinto, a observação e o diagnóstico não era apenas clínico. “Há tensões e contradições que ele vai gerindo, escrevendo sempre. Nuns casos denunciando.

Minas de San Francisco, Mata da Rainha

Temos isso presente, por exemplo, nas Minas de San Francisco  ou em A Noite e a Madrugada e em Pavia (concelho de Mora) a abordagem do latifúndio em o Trigo e o Joio.” Estas obras correspondem a uma fase “que muitos consideram rural.”
A partir da chegada a Lisboa, depois de 1950 “oferece uma outra geografia e uma outra forma de relacionamento entre as pessoas. É outro tipo de escrita.”

Pavia, onde terminou o livro Minas de San Francisco

Este é um dos motivos porque a obra de Namora é um roteiro dos lugares por onde passou. “Do ponto de vista do Roteiro Namoriano, dos lugares e da escrita, há em cada um destes locais um conjunto de obras que têm uma grande afinidade com esses lugares. Por exemplo, Coimbra tem Fogo na Noite Escura e As Sete Partidas do Mundo. Definem muito o que é o ambiente coimbrão de uma determinada época.  Hoje, diria que a generalidade daquilo que ele escreveu está apagado, é distante.”

A realidade sócio-económica retratada por Fernando Namora sofreu uma profunda alteração. Inclusive na prestação dos serviços de saúde. Mas outros, como o isolamento, ganharam novas formas. “Se verificarem, o Fernando Namora já nessa época fala muito em migrações. Fala um pouco em emigração, mas mais em migrações internas. Das pessoas que iam para o Alentejo ou para a cidade. Isso foi o início de um processo sem retorno. São territórios que vivem um pouco essa geografia madrasta e isso permanece.”
Surgiu também a novidade dos turistas em Monsanto que quebra a rotina, mas no tempo calmo, em “cada manhã, em Monsanto, nasce o Mundo.”
Retalhos da vida de Fernando Namora faz parte do programa da Antena1 Vou Ali e Já Venho e a emissão deste episódio pode ouvir aqui.

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